30 janeiro, 2008

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Trago dentro do meu coração, Como num cofre que se não pode fechar de cheio, Todos os lugares onde estive, Todos os portos a que cheguei, Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, Ou de tombadilhos, sonhando, E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero. [...] Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei... Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos... Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti, Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir. E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz. A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me, Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge, Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso, Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas, Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada, Deste desassossego no fundo de todos os cálices, Desta angústia no fundo de todos os prazeres, Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas, Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias. Não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei. [...] Fui educado pela Imaginação,Viajei pela mão dela sempre, Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso, E todos os dias têm essa janela por diante, E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

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Álvaro de Campos, Passagem das Horas. 22.V.1916
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6 comentários:

náufrago do tempo e lugar disse...

Entendo, também, que podemos sentir e viver uma infinidade de momentos em cuja vivência não participámos.

Sempre alinhei e alinho no ritmo, quer silencioso quer ruidoso da fantasia, ou mesmo nostalgia, desde que assuma as janelas abertas para a alvorada mesclada das cores que aquecem o sonho. Mesmo quando aquelas fazem estremecer a “normalidade” do presente e do esperado porvir. Ainda que essa fantasia e nostalgia venham, por vezes – muitas vezes mesmo -, vestidas de amargura, inquietude e até rebeldia, porque nessas visões de desassossego me criei e temperei. Mas também sinto nostalgia do presente e até do futuro em que não sou.

A realidade da minha imaginação é a minha única verdade.


Abraço.

teresamaremar disse...

Boa-noite Peregrino

podem sentir-se os momentos em cuja vivência não participámos, e até convencermo-nos de que fomos intervenientes ou protagonistas. Isto porque lembrei de um senhor amigo que, ao pretender escrever as memórias de estudante de Coimbra, e depois de as dar a alguns colegas de então, estes lhe disseram que não fora com ele que se passara o episódio X ou Y, porque já nesse tempo ele era contado como acontecido com outrém.

A nostalgia do futuro remete para Pascoaes :) e as suas saudades do futuro.

E, por fim, quanto á verdade... algures li que não há verdade mas arremedos de verdade.


Bom fim de semana

Anónimo disse...

Por escotilhas e janelas observei paisagens e nuvens, num desvario de fértil colheita.
Naveguei e voei muito para além do concreto, e aí me detive relembrando os locais reais em que havia estado.
E algures, bem longe do ponto de partida, interroguei o espaço e a mente, tentando ajuizar se era possível.

Era.
Foi.
Será.

rigoletto

teresamaremar disse...

O melhor é o silêncio profundo, no qual vivo contra o medo, e cresço, e ganho e conquisto o que não pode ser-me arrebatado por espada ou fogo, Goethe

O estóico aceita, o epicurista aproveita, há que sermos ambos. Sempre há um horizonte rumo ao qual navegar, basta, tão somente, termos um barco de papel.


Boa noite Rigoletto

observatory disse...

nao consegui encontar a foto do velho armazem de tecidos...

talvez a mande do porto no comboio da tarde

teresamaremar disse...

:)))